COVID-19 e a arquitetura
COVID-19 e a arquitetura

Pode parecer estranho o tema e até produzir um certo estranhamento fazendo o leitor se questionar o que a arquitetura pode ter de relação com a pandemia que enfrentamos causada pelo SARS-COV2. Mas posso afirmar que a relação existe, é extremamente pertinente e vai causar modificações profundas em nossas casas e cidades. Aliás quando observamos o passado é possível perceber como a questão sanitária foi e continua sendo umas das mais importantes no quesito de formulação dos espaços urbanos.
Só para usar de exemplo as grandes reformas em Paris que tanto embelezaram a cidade produzidas por Haussmann na época de Napoleão III foram feitas, em grande parte, para higienizar a cidade. Uma imensa área de ruas e edifícios foi demolida para dar espaço a grandes bulevares e parques, porque a insalubridade imperava nas ruas estreitas e medievais e nas construções apertadas e muito próximas umas das outras. Esses espaços com pouca iluminação e ventilação propiciavam um terreno fértil à propagação de tifo, cólera, tuberculose e outras doenças que grassavam as grandes cidades com epidemias intermináveis. No Rio de Janeiro do final do século XIX e começo do século XX não foi diferente e seguindo as premissas estabelecidas na reformulação de Paris vários edifícios foram demolidos, entre eles o famoso cortiço Cabeça de Porco que contava com 2000 pessoas habitando o local de forma precária, para dar lugar às grandes avenidas como a Av. Central. Desde essa época o pré-requisito à salubridade passou a ser uma exigência para qualquer planejamento de construção de edifícios e espaços urbanos que passaram a ser regulamentados para atender essa premissa.
Mas não foram somente os espaços urbanos que foram impactados por essa nova concepção moldada pela questão sanitária. Nossas residências também sofreram transformações nesse mesmo sentido para garantir a entrada de luz e a ventilação, tão importantes para higienizar os ambientes. As alcovas praticamente desapareceram, antigos quartos pequenos sem janela, assim como também as residências passaram a receber o uso de revestimentos de azulejos nas cozinhas como medida para prover a saúde e permitir fácil limpeza do local que passou a ser percebido como fonte de propagação de doenças e o lavabo surgiu como solução para os proprietários não terem que dividir o próprio banheiro com pessoas que não habitassem o local. 
Mas e agora, e para o futuro? Sabendo que a questão sanitária já é muito pertinente na forma como concebemos nossos espaços o que nos acarretará o espólio dessa guerra contra a pandemia do novo coronavírus na forma como construirmos nossas casas e cidades? A resposta não é simples e carrega em si muito palpite porque ainda estamos no meio dessa luta e ainda não sabemos o que vai acontecer e muito menos em como lidar com a situação atual. Mas várias tendências e atitudes podem ser observadas e a partir delas construir um ideário dos impactos na arquitetura. E vou começar pelo menos óbvio e pelo quesito que não está diretamente relacionado à questão sanitária, e até estava em execução pelo mundo afora, mas numa outra velocidade que agora sofreu uma aceleração extremamente abrupta. Falo da transformação digital que tivemos que implementar às pressas em nossas residências para possibilitar o trabalho em home office. Muitos vão falar que ela já estava ocorrendo no mundo, mas nada nessa velocidade e nada nessa escala. E o que se tem observado é que muitas empresas estão entendendo que o home office pode deixar de ser uma alternativa para ser usada de vez em quando e passar a ser o comum do dia a dia, pois muitas delas perceberam ganhos de produtividade e diminuição de custos, pois não há o tempo e o valor dispendido nos deslocamentos e o custo de operação fica por conta do dono da casa, como a energia elétrica e os equipamentos necessários ao trabalho e conexão. Mas a revolução digital não se limita apenas ao home office, ela vai além, porque os restaurantes, supermercados e todos os serviços que podem ser encomendados por aplicativo e serem entregues no endereço que quiser estão sendo usados avidamente. A internet já vinha exterminando as lojas físicas há tempos, mas agora o fechamento delas está ocorrendo em escala exponencial porque também muitas vão falir sem faturamento devido à interrupção das atividades. E me pergunto o que ocorrerá com o espaço nas cidades que antes eram ocupados pelas lojas se muitas fecharem. Vão se tornar moradias coletivas, locais abandonados ou salões da Igreja Universal? Difícil responder, mas alguma transformação irá acarretar. Só espero que os filmes que retratam distopias como ‘Divergente’ e ‘Maze Runner’ sejam apenas delírios criativos que adoramos apreciar no cinema e que estejam longe de qualquer aproximação com nosso futuro.
Então quando a quarentena terminar não vamos mais voltar ao normal porque aquele tempo não existe mais. Uma nova ordem está sendo implantada na marra e ela está causando modificações na maneira como habitamos e trabalhamos e isso impacta os espaços que construímos porque eles precisam atender as necessidades do dia a dia. Nas residências será obrigatório um espaço destinado a um escritório e não será mais um quebra galho, um cantinho do mezanino ou uma bancada no corredor de acesso aos quartos porque não dá para trabalhar dedicado em home office de forma precária. Será necessário um espaço projetado exclusivamente para o trabalho em casa e ele terá que ser bem pensado porque precisa evitar a perturbação de barulhos comuns de um lar como crianças brincando e cachorro latindo e precisará possuir mobiliário e tecnologia que permitam ao funcionário exercer suas funções à distância e vai ter que ficar ‘bem na foto’ porque todo mundo vai ter um pequeno estúdio em casa devido as reuniões em vídeo e as atividades que serão gravadas para serem postadas depois. Uma estante com livros bem escolhidos como cenário de fundo vai ser o mínimo exigido em qualquer escritório. Em relação às crianças também será necessário repensar seus quartos ou locais de estudo por causa das atividades escolares feitas à distância ou vocês acham que as escolas vão parar de transferir parte das atividades para as nossas casas depois que a pandemia passar? Pensem, atividades em casa é igual a menos funcionários e menor necessidade de espaço físico à disposição e isso significa menores custos e alocação de recursos. As portarias de prédios e condomínios terão que se adaptar à crescente demanda por serviços de entrega assim como as casas porque ninguém vai querer se deslocar a toda hora para receber encomendas e o porteiro também tem mais serviços para fazer do que somente atender os motoboys. Soluções? Estamos aguardando.
O espaço que mais está sendo construído agora não existe porque ele é virtual, mas é a forma de exercemos parte de nossas atividades sem ter que parar e embora esse ambiente não exista ele impacta a realidade. A internet se tornou o bulevar dos dias atuais e os smartphones os veículos que nos levam até ela. O que vai acontecer com a interação social? Será mais digital ainda e o tempo nos dará as respostas. 
Mas citei até agora apenas a questão da revolução digital, mas e a sanitária? O que mais acarretará aos nossos ambientes o período que conviveremos com a COVID19? Que medidas serão tomadas na concepção dos espaços para se evitar as doenças infecciosas? Nas residências a ideia do lavabo será aprimorada e além dele ser localizado logo na entrada do lar ele também possuirá uma área de transição onde as pessoas terão à disposição um local para se sentar como um pequeno banco e uma bancada com o álcool em gel ou um lavatório e cabides, nichos ou armários para deixarem objetos e calçados que estiveram na rua a fim de evitar a contaminação do ambiente interno. O costume oriental de não entrar calçado dentro do lar vai conquistar o mundo. O uso de materiais mais assépticos e fáceis de limpar vão ser utilizados com mais frequência. Tudo o que puder evitar o acúmulo de pó será bem-vindo. Se o minimalismo já estava conquistando adeptos pelo mundo agora ele se tornará a ordem dominante. O método da Marie Kondo será o livro de cabeceira de muita gente. 
As cidades, principalmente os centros urbanos, sofrerão o maior impacto porque seus espaços, meios de transporte e atividades propiciam a aglomeração e a rápida propagação de doenças. Se no passado elas conseguiram resolver com maestria as dificuldades sanitárias por meio da implantação de sistemas de tratamento de água e esgoto, assim como de práticas para garantir a luz natural e a ventilação aos edifícios hoje sua forma de ser é um dos maiores vetores de propagação da COVID-19, haja visto que as maiores cidades são exatamente onde a doença se propaga mais rápido e acomete mais pessoas. Teremos que diminuir as aglomerações e repensar a distribuição e o controle de alimentos porque não é a primeira vez que uma epidemia surge de nosso contato com a vida selvagem. Os mercados populares e feiras livres serão seriamente afetados ao redor do mundo, pois não foi à toa que a China recentemente passou a proibir o comércio de carnes selvagens. Haverá um conflito entre a forma de controlar a distribuição de alimentos e a busca por itens mais naturais tão em voga atualmente. Praticamente teremos que usar os métodos de controle industriais num sistema de produção orgânico ou algo próximo disso porque não será mais possível permitir que o comércio da carne de um animal exótico venha a contaminar o mundo inteiro novamente. Nunca antes a teoria do caos, mais precisamente o ‘efeito borboleta’ teorizado pelo matemático Edward Lorenz esteve tão certa porque bastou um chinês espirrar para o mundo todo sentir as consequências. Imagine no futuro quando ele tossir então.
O sistema de transporte será afetado também, principalmente os aeroportos que são os portões de importação rápida de doenças. Sistemas de controle serão implementados e vistorias e entrevistas a respeito da saúde de seus usuários serão corriqueiras. O raio x do aeroporto passará a procurar mais do que bombas e espaços destinados à quarentena passarão a fazer parte da infraestrutura desses locais. Não se assuste se no futuro chegar a algum local por meio de avião e ter que permanecer por alguns dias em monitoramento antes de ser liberado para transitar por determinado país. Nesse momento que escrevo isso já está acontecendo na China. 
As diretrizes de concepção das cidades vão mudar abruptamente, pois hoje elas dão muita ênfase para resolver a questão financeira ou imobiliária seguida das soluções de transporte, serviços e setorizações que permitam rápido acesso entre suas zonas diferentes. Percebo pelas discussões que surgem que a ideia de sustentabilidade está ganhando outros horizontes e deverá ser destaque no futuro da criação e revisão de nossos centros urbanos porque as soluções construídas no último século ajudaram a melhorar o transporte, o conforto e a questão sanitária, mas contribuíram para a aglomeração e a dispersão de doenças. Os grandes centros urbanos se tornaram na maior arma dos vírus. Nós propiciamos mais qualidade de vida para as nossas vidas e ao mesmo tempo criamos o local ideal para o SARS-COV2. Também o futuro nos apresentará as soluções, mas com certeza ele será mais focado no exercício das atividades humanas de uma forma mais equilibrada e sustentável com o nosso planeta.
A vida frenética das cidades deverá sofrer uma desaceleração a fim de conter as rápidas propagações de doenças e alguns costumes poderão mudar. Nos países latinos onde as pessoas são mais propensas ao contato físico algo sofrerá mudança e talvez nos aproximemos mais da forma oriental de saudação ou do jeito seco de outros países que praticamente nem se cumprimentam. Será uma involução, com certeza, uma grande perda de humanidade. No momento que escrevo esse texto percebo como o convívio nas cidades nos faz uma falta tremenda e embora elas possam carregar em si muitos problemas e até serem vetores de disseminação de doenças elas são o local onde a humanidade consagra sua existência. Somos seres sociáveis e elas são o palco do acontecimento de nossas vidas. Falo isso porque qualquer paisagem da natureza, por mais bela que possa ser não carrega em si a grandiosidade que somente uma cidade pode ter de ter sido construída pelas mãos humanas, de ter sido desejada, planejada e concebida segundo princípios artísticos, políticos e éticos, de ter participado e contribuído para a história das civilizações e de conseguir por tudo isso consagrar a capacidade e a genialidade da humanidade porque não há sensação mais entusiástica do que caminhar por Veneza e se deleitar com a ousadia do ser humano em construir algo tão belo em terreno tão difícil ou visitar a Ile de la Cité em Paris e ficar boquiaberto em frente à Notre Dame ou sentar-se num dia quente em algum bar da Lapa no Rio de Janeiro e bebericar um chope ao som de um chorinho ou perceber a magnitude e possibilidades da evolução humana ao visitar Brasília e se emocionar na sua catedral mesmo não seguindo nenhuma religião. Enfim eu sei que nossos costumes, ambientes e cidades sofrerão mudanças e muitas não serão agradáveis, mas espero que depois de tudo que ainda venha a acontecer por causa dessa pandemia ainda possamos nos encontrar numa tarde de domingo e tomar um sorvete na praça.